1


Na tarde curva de um dia (in)útil: 

Começou.  

Horas depois ele ainda estava no ponto. Seu ônibus já passara inúmeras vezes. Mas ele não percebera. Assim como não percebera também a passagem do tempo.  

Quando chegara ali, a tarde ainda era jovem. Mas, àquela hora, ela já envelhecera e morrera. A noite reinava. O ponto já se esvaziara e enchera vinte e sete vezes.  

As pessoas embarcavam nos ônibus.  

Partiam.  

Ele permanecia. E apenas observava. Mas como se nada visse.  

Observava.  

Sem pensar; apenas observava.  

Andava escorava sentava fumava. Já estava no segundo maço de cigarros.  

Os ônibus passavam. Inclusive o seu.  

Será que o via com os números trocados?  

Àquela hora já deveria estar em casa. Mas parecia não se lembrar que tinha uma casa. Não se lembrava também por que estava ali.  

Observava os carros, as pessoas – seus gestos –, ouvia as conversas, até ria de anedotas contadas; mas nada fazia além de fumar e olhar.  

 

* 

 

Estava em uma avenida movimentada. Mas não havia muito com o que se distrair. Pegava o ônibus naquele ponto todos os dias. Nascera e crescera naquela cidade. Estava já habituado àquele movimento. Para ele, aquele cenário não possuía novidade alguma. Apenas uma enorme falta de sentido.  

Se houvesse novidade, haveria de estar nas pessoas. Por exemplo, naquele senhor que agora atravessa a avenida segurando a mão de uma menina. Parecem avô e neta.  

De repente, o casal lhe chamou atenção. Numa espécie de déjà-vu, viu aquele senhor terminando de atravessar a rua, tirando um cigarro do maço e lhe pedindo fogo.  

 

Lembrou-se de Beatriz.  

 

* 

 

Emprestou o isqueiro.  

 

* 

 

Enquanto o senhor acendia o cigarro; reparou na menina, que aguçadamente se sentava. Nas mãos um caderno e uma caneta.  

Ou seria um lápis?  

Não importa.  

 

* 

 

O senhor devolve-lhe o isqueiro.  

E ele já ia acender outro cigarro quando notou que seu ônibus se aproximava.  

Sentiu-se aliviado; e uma estranha sensação de que o ônibus demorara muito a passar.  

O ônibus parou.  

E – em meio aos passageiros que se estapeavam para ver quem entraria primeiro – viu que a garota fazia um desenho: 

 

* 

 

era ele.  

 

* 

 

Ela o desenhava,  

e toda sua vida estava...  

– naquela folha de papel – 

...em branco. 

 

* 

 

Parou – observando a criação (sua e dela).  

 

* 

 

Perdeu o ônibus. Mas não percebera.  

Esquecera novamente por que estava ali.  

 

No instante em que terminava o desenho a menina foi chamada pelo senhor.  

Caderno fechado.  

Cigarro no chão.  

Embarcaram.  

 

* 

 

Da rua, observou avô e neta se acomodarem no ônibus que descia a avenida.  

Após perdê-los, percebeu que o senhor não fumara todo o cigarro; que agora queimava abandonado na calçada.  

Começou, então, a observar a fumaça. Não via mais nada. Apenas a fumaça. Ventava levemente. E o vento brincava com a fumaça. E a fumaça brincava com o vento. Brincaram até o cigarro dar seu último suspiro.  

Com o cigarro apagado, sem a fumaça para distraí-lo, o vento foi ficando mais forte... mais forte...  

Incorporada ao vento, em meio a todo tipo de sujeira e poeira que há em avenidas como aquela, avistou uma folha seca. Seguiu-a – com um par de olhos órfãos – enquanto o vento a tragava morro abaixo. De repente desejou aquela folha como nunca antes desejara nada. E saiu correndo atrás dela. Porém, quanto mais corria, mais ventava, e mais célere a folha era levada. Quanto mais corria, mais ventava, e mais célere a folha era levada...  

 

 

2 

 

Ia correndo pela calçada, quando, de repente: parou! Dentro dele algo lhe dizia que ainda sabia o que fazer. Silenciosa, sua intuição lhe dizia que ele sabia o que fazer. Mas e daí? Que lhe adiantava isso, se não o lembrava como fazer? O que fazer? Ele nem queria saber por que fazer, só o quê ou como. Sabia que sabia, mas não se lembrava.  

Desesperadamente não se lembrava. Tudo que havia em seu cérebro se escondera em algum lugar. Só restara um pensamento, que lhe dizia que ele ainda possuía uma memória. Mas onde ela estava? Como acessá-la? Ele não sabia.  

Estava parado na calçada olhando a rua. Passavam carros, ele apenas observava. Pessoas passavam, atravessavam a rua, ele observava apenas. Ninguém o notava ali. Aliás, qualquer um que o notasse pensaria que ele estava parado ali por algum motivo. Talvez estivesse esperando alguém. E também as pessoas hoje andam tão apressadas que mal percebem o mundo ao redor. Talvez se ele estivesse dentro de alguma daquelas telas que as pessoas passavam segurando, olhando. Mas ele não estava dentro de uma tela. Não estava no mundo virtual hoje tão atraente.  

Estava no mundo real. E apesar de ter perdido a memória, percebia o mundo a sua volta. Como nunca antes o percebera. Mas o mundo o ignorava. Pessoas passavam, e atravessavam aquela rua. Mas ele não se movia. Deveria também atravessá-la? Mas para quê? E o que fazer quando do lado de lá estivesse? Não se lembrava como chegara ali. Nem para onde estava indo antes de ali chegar. Adiantaria sair do lugar, pegar um caminho, se não sabia para onde ir? Talvez se voltasse. Mas para onde?  

 

3 

 

Voltou pro ponto.  

Afinal,  

chegou num ponto da vida em que a vida é um ponto.  

 

* 

 

Pegou o ônibus.  

Dentro percebeu que todos ali eram fantasmas.  

Fantasmas indescritíveis.  

Fantasmas que nasceram humanos, mas que os anos transformaram-nos.  

 

* 

 

De repente.  

Sentiu.  

Que se voltasse.  

Que se continuasse.  

Os anos também o transformariam em fantasma.  

 

* 

 

Descobriu, então — e atônito — que todos os adultos com quem convivia eram fantasmas.  

Exceto 

os bêbados, os desempregados, os loucos, os rejeitados.  

Os tortos eram todos humanos. Tão humanos!  

Os demais todos fantasmas.  

 

* 

 

Compreendeu, então, que não podia voltar no dia seguinte ao trabalho: não queria se transformar em fantasma.  

 

* 

 

Num ápice de lucidez e surto, desespero e consciência, gritou para que o motorista parasse o ônibus.  

Desceu.  

 

* 

 

Lembrou-se de Beatriz.  

 

* 

 

Onde estaria agora aquela folha seca?  

 

* 

 

Lembrou-se da menina.  

Lembrou-se do desenho.  

Acendeu um cigarro.  

  

* 

 

Onde estaria agora Beatriz?  

 

* 

 

Exausto, sentou-se no meio fio. Os pensamentos corriam sozinhos.  

Beatriz. O senhor. A menina. O desenho. Os fantasmas indiferentes dentro do ônibus.  

 

* 

 

Outro cigarro.  

 

* 

 

Lágrimas começaram a cair como folhas secas no outono.  

 

* 

 

Abandonado ali. Esquecido. E tomado por tantas lembranças.  

 

* 

 

A memória voltara.  

Lembrava-se agora das horas no ponto de ônibus.  

Da corrida atrás da folha.  

Da volta ao ponto de ônibus.  

Toda sua vida sendo processada por uma lucidez agonizante.  

 

* 

 

Alguma coisa precisava ser feita.  

 

* 

 

Mas não hoje, não agora.  

Era necessário permitir aquelas lágrimas. Suportar a ideia de que nascera neste mundo.  

 

* 

 

Que horas eram?  

E este vento frio? Há quanto tempo está ventando assim?  

Onde estaria agora Beatriz?  

O que estaria fazendo?  

Parece que vai chover...  

E esse vento frio...  

Outro cigarro...  

Pensou que uma cerveja lhe faria bem...  

Mas lhe faltava ânimo para se levantar dali...  

Mesmo sentindo frio...  

Mesmo com esse vento...  

Mesmo estando tão lúcido...  

E esse vento ficando cada vez mais forte...  

E esses pensamentos todos...  

E esse vento...  

E esse olhar perdido... voltado pra dentro...  

E esse vento...  

Onde estariam agora o senhor e a garota?  

Ela realmente o desenhara?  

E Beatriz?  

E tudo?  

E nada?  

E esse vento...  

E aquela folha?  

O que foi aquilo?  

E esse vento… 

E esse vento… 

 

* 

 

E esse vento...  

O que é isso?  

Uma folha seca carregada pelo vento parou na lateral do meu tênis...  

Parecia ter algo escrito...  

Delicadamente, segurei-a na palma da minha mão.  

Em um de seus lados, estava o desenho, o meu desenho que a garota fizera mais cedo.  

No outro lado, aquela folha parecia uma folha de papel. Branca.  

Tinha algo naquele desenho.  

Minha face ali estampada possuía uma aparência fantasmagórica.  

E esse vento...  

Parece que vai chover...  

E essa lucidez...  

Uma cerveja agora cairia bem...  

Mas e esse vento... ficando mais forte.. mais forte...  

E essa folha...  

Abri a palma de minha mão para que o vento a levasse...  

E saí correndo atrás dela. Porém, quanto mais eu corria, mais ventava, e mais célere a folha era levada. Quanto mais eu corria, mais ventava, e mais célere a folha era levada...